
Uma atualização no Regimento Interno da Câmara da Serra causou constrangimento durante a sessão plenária. O Projeto de Resolução nº 10/2025, que altera a redação de dezenas de artigos relacionados às normas internas da Casa (Resolução nº 278), modificou também o artigo 63, atualizando a nomenclatura da comissão responsável por políticas legislativas voltadas às minorias. 6w4111
Durante a discussão, o vereador Antonio Carlos CEA (Republicanos) — que é membro da referida comissão — questionou a alteração em plenário, classificando-a como “irrelevante”. A declaração gerou desconforto entre os demais parlamentares presentes.
A comissão em questão deixou de se chamar “De Direitos Humanos, do Negro, da Mulher, do Idoso, da Criança e do Adolescente e das Pessoas com Deficiência” e ou a ser intitulada “De Direitos Humanos, da Igualdade Racial, da Mulher, do Idoso, da Criança e do Adolescente, dos Povos Tradicionais e das Pessoas com Deficiência”.
Mais do que uma simples troca de palavras, a mudança é um reconhecimento formal, por parte da Câmara da Serra, da diversidade que compõe a cidade e da necessidade de ampliar a representatividade nos espaços de debate e formulação de políticas públicas. Ao substituir o termo “do Negro” por “da Igualdade Racial”, por exemplo, amplia-se o escopo do debate, incluindo outros grupos afetados por discriminação racial.
Com a inclusão dos “Povos Tradicionais”, o Legislativo reconhece os direitos e especificidades de comunidades invisibilizadas, como quilombolas, indígenas e ribeirinhos, entre outros. Esse tipo de atualização alinha a Câmara às demandas contemporâneas de uma sociedade em amadurecimento. Embora a Serra tenha mais de 400 anos de ocupação desde o período colonial, como fenômeno urbano moderno, a cidade ainda é jovem — e tem no fortalecimento institucional um caminho para avançar em justiça social, inclusão e cidadania.
O vereador Antonio Carlos CEA questionou a Mesa Diretora sobre a mudança na nomenclatura da comissão, argumentando que, em sua visão, tal comissão seria “absolutamente irrelevante”, uma vez que a Constituição determina que “todos somos iguais”. Para ele, a existência de uma comissão voltada às minorias colocaria esses grupos em uma situação de vantagem social, já que haveria um instrumento legislativo específico destinado a eles.
Coube à vereadora Raphaela Moraes (PP) responder ao questionamento. Em sua fala, ela defendeu que a existência da comissão é justamente para garantir a igualdade prevista na Constituição, pois trata-se de povos com necessidades específicas. Segundo Raphaela, para que esses grupos de fato alcancem igualdade de direitos, é necessário tratá-los de forma diferenciada no âmbito das políticas públicas, uma vez que as ações generalistas muitas vezes não os alcançam nem os contemplam adequadamente.
Em seu questionamento, CEA afirmou não saber o que significaria “povos tradicionais”; Raphaela deu exemplos citando “quilombolas e ciganos”, mas que na verdade atende a uma gama de seres humanos muito mais ampla, tais como indígenas, ribeirinhos, pescadores e povos ligados às religiões afro-brasileiras, por exemplo. Não convencido pelos argumentos de sua colega, o vereador CEA votou contra as mudanças e causou um clima de constrangimento no plenário.
Cabe aqui um relevante apanhado de informações, dada a riqueza histórica da Serra. O município é um dos maiores exemplos da presença e contribuição dos povos indígenas na formação do território, da cultura e da identidade capixaba. Ainda que as aldeias indígenas tenham começado a ser extintas na Serra após a expulsão dos jesuítas do Brasil, em 1759, a influência indígena permaneceu marcante, especialmente nas regiões de Nova Almeida e Carapina.
Prova disso é que, segundo o Censo Demográfico de 2022, do IBGE, a Serra foi listada como a segunda cidade mais indígena do Espírito Santo (1.326 pessoas), atrás apenas de Aracruz (7.425 pessoas indígenas) — município que conseguiu preservar suas aldeias indígenas. Na prática, grande parte dos indígenas de Aracruz são descendentes diretos dos povos que ocupavam a antiga Aldeia de Reis Magos, localizada em Nova Almeida. Com o ar dos séculos, esses povos foram gradativamente expulsos, especialmente após o local ser transformado em vila sob os moldes istrativos de Portugal.
Outro grande segmento de destaque é o dos pescadores artesanais, que foram severamente impactados pela tragédia/crime de Mariana, em 2015. O rompimento da barragem em Minas Gerais despejou toneladas de lama tóxica no litoral do Espírito Santo, atingindo diretamente o território da Serra — cidade reconhecida por estudos científicos e instituições oficiais como afetada, e incluída nos esforços de mitigação dos danos socioambientais.
A Serra é uma das poucas cidades capixabas cortadas por três rios — Reis Magos, Jacaraípe e Santa Maria da Vitória — utilizados para pesca há séculos, além de abrigar duas das maiores lagoas do Espírito Santo, Juara e Jacuném, que também têm grande importância ambiental, econômica e cultural.
E o que dizer sobre as políticas públicas voltadas para as mulheres? Até o início de maio, a Serra liderava o ranking estadual de violência doméstica. Dos 8.813 casos registrados, 1.062 ocorreram no município, envolvendo crimes como estupro, lesão corporal, descumprimento de medida protetiva e ameaça.
Nada disso é irrelevante. A amplitude de uma comissão como essa — voltada aos direitos humanos, igualdade racial, povos tradicionais, mulheres, crianças, idosos e pessoas com deficiência — transcende bandeiras partidárias e toca em temas que vão do meio ambiente à segurança pública, sempre relacionados à defesa de grupos historicamente vulneráveis.
A própria Câmara da Serra tem dado os importantes no reconhecimento das pessoas com deficiência. Prova disso é a eleição do atual presidente da Casa, Saulinho da Academia (PDT), que é pessoa com deficiência auditiva e tem liderado iniciativas em prol da inclusão.
Esses são assuntos que não pertencem à direita nem à esquerda: pertencem à dignidade humana — e tratam do que há de mais essencial na vida em sociedade: o respeito à diversidade e à justiça social.